O céu cinzento parecia antecipar as horas
naquela tarde sombria, levando o homem a andar mais depressa como a tentar poupar-se
de uma chuva ou de concluir a caminhada no escuro da noite. Talvez sem perceber
a fome o impelia a ir mais rápido. Porém ele sabia perfeitamente que em sua
casa, seus filhos também amargavam a escassez de provisões.
Sua ida a
Jerusalém não lhe rendeu o esperado trabalho e o coletor de impostos confiscou-lhe
os últimos dois denários como tributo. Ganância corrupta.
O silêncio da
estrada pedregosa e deserta o afligia na busca de desculpas a apresentar.
Desculpas quando de fato sua única culpa era a de estar vivo. Desculpas a apresentar por cuidar em
satisfazer olhos famintos, quer seja dos filhos que o aguardavam ou dos
soldados romanos junto ao coletor.
As vozes dos
desocupados assentados nas rochas soaram solidárias. O semblante sombrio,
ombros curvados e mãos vazias testemunhavam sua vergonhosa miséria e foi
poupado. Poucas palavras trocadas reafirmaram seu infortúnio.
Os rápidos
movimentos dos desconhecidos levaram-no a também esconder-se instintivamente
nas rochas. Pareceu-lhe seguro o abrigo do incerto, pois o som de passos
pesados aproximava-se. Arremessou a pedra com a força da angústia e do medo,
antes mesmo de identificar o motivo. Mas os desocupados rápidos e hábeis já
aliviavam o turco obeso de sua sobrecarga.
Depois da
consciência perturbada pelo ocorrido, apossou-se na partilha de damascos secos,
um pão e algumas moedas, concluiu em rápida evasão inspirado pelos comparsas encontrados
pelo acaso. Estes levaram o alforje, iguarias e as roupas do mercador viajante,
deixando-o inconsciente e nu.
O céu
cinzento parecia antecipar as horas naquela tarde sombria, levando o homem a
andar mais depressa como a tentar poupar-se de uma chuva ou de concluir a
caminhada no escuro da noite.
Talvez o
cansaço por permanecer assentado na coletoria o dia todo o impelia
inconscientemente a buscar o conforto da sua casa. Talvez estivesse tentando
apenas afastar-se da desconfortável presença dos soldados que como
sanguessugas, pilhavam os estrangeiros alegando tributo a Cesar.
O silêncio da
estrada deserta o afligia com o eco das palavras do galileu maluco que o
convidou: “Mateus! Venha comigo”.
O trabalho
abjeto, porém amparado pelas bênçãos de Júpiter sob a guarnição de lanças e
espadas, lhe permitia chegar ao lar abonado. O bom sustento dos seus e a posição social
mascaravam um sentimento de dever cumprido, dentro da legalidade. Mais
aceitável que as ideias do nazareno maluco.
No caminho, saudações
cordiais das autoridades religiosas confirmavam o famigerado escalão social,
assim como o abraço da esposa e dos filhos ao entrar pela porta.
O céu
cinzento parecia antecipar as horas naquela tarde sombria, levando o homem a
andar mais depressa como a tentar poupar-se de uma chuva ou de concluir a
caminhada no escuro da noite.
Foi comprar
grãos recém-moídos pelo vizinho e que ainda precisavam ser preparados e
transformados em pães. A lenha aquecia ao crepitar dos gravetos iniciando o
fogo. Logo o forno estaria quente.
Mesmo que não
houvesse hóspedes, as lâmpadas precisavam ser abastecidas em prontidão caso
algum cliente ainda surgisse. A difícil
esperança do incerto.
Alguns
levando mercadorias de Gaza a caminho de Decápolis. Outros vindos da Pereia e
que perderam tempo na travessia do Jordão, preferindo descansar antes de subir
até Belém. O caminho pedregoso,
convenientemente evitado ao anoitecer.
Ele preferia
que não houvesse mais espaço vago, mas concordou em auxiliar o samaritano que
estacionou seu animal frente à pensão rogando ajuda. Talvez até preferisse
hospedar o burro, tal era o estado imundo do turco.
Empoeirado,
nu e ensanguentado. E obeso.
Não fosse o
viajante antecipar o pagamento das despesas, teria deixado aos cães a tarefa de
limpar os ferimentos.
Apenas a
atenção fria e cordialidade comercial.
Experiências
anteriores lhe ensinaram que calotes não alimentam a família e a generosidade
nos serviços prestados raramente é reconhecida. Muito menos gratificada.
Remuneração
de dois dias de trabalho, recomendações de cuidados e o compromisso assumido de
arcar com despesas adicionais. E lá se foi o samaritano. Simples mas confiável.
O céu cinzento parecia antecipar as horas
naquela tarde sombria, levando o homem a andar mais depressa como a tentar
poupar-se de uma chuva ou de concluir a caminhada no escuro da noite.
Como a fugir
do asco do sangue e entranhas de animais sacrificados, do vozerio do povo em
suas reivindicações e dos fariseus discutindo aspectos triviais de ritos num
tom de vida ou morte. Dos vendilhões anunciando os melhores animais com
argumentação do aroma mais agradável no altar de Deus, junto com o tinir das
moedas confirmando o êxito de um embuste coletivo. Quiçá tentando iludir
inclusive ao Todo-poderoso na barganha do perdão.
Amanhã seria
outro dia igual aos demais. A mesma rotina. Os mesmos odores.
Mas hoje,
após abastecer seu incensário, solicitou ao sumo sacerdote a permissão para ir a
Jericó para visitar seus pais. Deixou as
brasas consumindo o incenso, encheu seu odre com água para a caminhada.
A estrada
pedregosa e deserta mostrou seu perigo logo após a curva. A surpresa da visão
do homem caído ensanguentado fez disparar os batimentos cardíacos e também a
lembrança do cuidado de que o sacerdote não se deve contaminar ritualmente por
tocar em mortos.
(Será que
estava realmente morto?)
O ímpeto de
afastar-se de impurezas o fez descrever um arco evitando a aproximação do
impuro.
Não lhe seria
conveniente dar atenção a um possível incircunciso. Tocar nele em prestação de
socorro estava fora de cogitação. Talvez seus protocolos de atendimento
emergencial remetessem a algum tipo de órgão público incumbido desse tipo de
atitude.
Na falta de
celular para ligar ao SAMU, seguiu seu caminho. Aquilo não era problema seu.
O céu cinzento parecia antecipar as horas
naquela tarde sombria, levando o homem a andar mais depressa como a tentar
poupar-se de uma chuva ou de concluir a caminhada no escuro da noite.
Em linha reta
sua ronda talvez se limitasse a meio dia de caminhada. Mas naquele caminho
pedregoso e cheio de curvas, o cansaço aumentava proporcionalmente a altitude.
Ainda bem que depois de sua folga, estava designado apenas a permanecer na
guarda. Pilatos tentava fazer política de boa vizinhança com os judeus e por isso
imaginou dias tranquilos com pouco a fazer.
Por boa vizinhança nem sequer cumprimentou os
desocupados sentados nas pedras à beira do caminho. Apenas olhares desconfiados
aliados à confiança na espada e em seu treinamento militar.
“Deixe quieto”.
Os desocupados
o acompanharam em olhar silencioso até desaparecer na curva.
Da mesma
forma, mais adiante ignorou o homem que descia cabisbaixo. Uma atitude
amedrontada daquelas não condizia com zelotes ou outros rebeldes.
Chegou a
pensar em abordar um comerciante de especiarias que vinha a passos pesados. Mas
isso poderia lhe causar mais perda de tempo do que lucro.
Mais adiante
cumprimentou solenemente um sacerdote apressado.
Enquanto se
assentava para ajeitar as correias das sandálias, viu descendo outro homem de
olhar altivo. Primeiramente imaginou ser algum escriba, mas a resposta à sua
saudação revelou ser um levita. De fato ele ainda não havia aprendido a
diferenciar as aparências de um e de outro. Sempre confundia. Grande porcaria.
Para ele, apenas farinha do mesmo saco.
Antes de
chegar a Jerusalém, outro viajante chamou sua atenção. Ao ser abordado, solícito, apeou do jumento
para responder ao soldado seu destino. Samaria.
Não havia
nada nesse último que o desabonasse e assim, continuou seu caminho.
O céu cinzento parecia antecipar as horas
naquela tarde sombria, levando o homem a andar mais depressa como a tentar
poupar-se de uma chuva ou de concluir a caminhada no escuro da noite.
Não fosse
ouvir um gemido moribundo, talvez fosse até tropeçar no homem caído. Absorto em
pensamentos além do Jordão compondo com o ritmo do ruído dos passos no caminho
pedregoso, sua surpresa culminou numa rápida e fria análise do quadro.
Os traços
trácios o ligavam ao patriarca Javé, muito distante do seu patriarca Levi. O
corpo ferido e caído confirmava que ele tinha ido além dos limites em expor-se.
- “Vacilão!”
O que leva um
ser a vir de tão longe em suas ambições comerciais? Talvez até tenha merecido a
surra...
Outra rápida
olhada ao redor determinou a sentença da indiferença. Seria melhor ir adiante
antes que ele se tornasse a próxima vítima dos salteadores. E sua ocupação não
era a de socorrista. Afinal, ele já tinha mais de vinte e cinco anos.
O céu cinzento parecia antecipar as horas
naquela tarde sombria, levando o homem a andar mais depressa como a tentar
poupar-se de uma chuva ou de concluir a jornada no escuro da noite.
Montou
habilmente o burro e tratou logo de iniciar seu regresso. Sua pressa o fez esquecer-se
de oferecer água ao animal antes de iniciar a viagem, mas lembrou da fonte
jorrando junto às palmeiras em Jericó. Haveria tempo hábil para isso. Talvez
até pernoitasse aproveitando para conversar com seu amigo estalajadeiro.
Seu plano
precisou reajustes.
Como se não
bastasse o tempo perdido com o interrogatório do soldado no caminho, os gemidos
do homem ferido no caminho pedregoso o comoveram.
Usou a água
restante do seu odre para reanima-lo e aliviar o ardor dos ferimentos.
Colocou-o sobre o burro, cobrindo sua nudez com seu próprio manto de viagem e
continuou cautelosamente.
Não havia
como levar o estrangeiro junto para cuidar dele em sua própria casa. Ele
precisava repouso e não o sacolejar no lombo do burro até Samaria. Preferiu
deixa-lo aos cuidados do amigo, pagando com as moedas que tinha poupado para a
viagem.
Ao passar
pela fonte deixou seu burro saciar a sede enquanto enchia novamente seu odre.
Teria que
apressar-se e continuar seu caminho. Não haveria dinheiro suficiente para ficar
hospedado também.
O moageiro observou
tudo de frente de sua casa e riu.
“Só pode
mesmo ser um samaritano trouxa...”